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Liddell em Avignon: em busca da verdadeira beleza – L'!NSENSÉ
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Liddell em Avignon: em busca da verdadeira beleza

Adentrei ao teatro a poucos minutos do início do espetáculo e, para minha surpresa, a primeira fileira estava quase vazia. Os espectadores tinham medo da grande proximidade física, tinham receio do que lhes pode ocorrer… Sim, desde sua estreia no Festival d’Avignon 2016, havia um murmúrio nos bastidores sobre o trabalho (geralmente quem o tinha visto era o amigo do amigo): de que era forte, de que havia a famosa cena do polvo, de que a encenadora havia ultrapassado os limites, e blábláblá… Já havia igualmente lido algumas críticas na internet a respeito. A maioria tratava a artista como louca, doente, neurótica, que seu trabalho era de mau-gosto, e blábláblá de novo… Confesso que tive receio do que me esperava. Ao final de 5 horas (com intervalos), saí do teatro com a certeza de ter visto uma artista no auge da sua maturidade estética e ideológica. Sim, Angélica Liddell é mulher-artista-espanhola, e ela assume com muito orgulho esse papel de figura bufonesca/ de louca/ de estrangeira num espaço como o Festival d’Avignon (um dos pilares culturais da sociedade francesa). Só aquele com olhar exterior aos fatos detém a liberdade de dizer as verdades mais cortantes… Cortante como uma espada… E Liddell mostra que a questão do político em cena, grande pauta do festival desse ano, é muito mais profunda que velhas discussões sobre ética…

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[/DIONISIO: Sê sensata, Ariadne!
Tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
acolhe nelas uma palavra sagaz!
Não há que odiar primeiro, antes de amar? …
Eu sou teu labirinto…
(Nietzsche)/]

Um circo à la Jodorowsky
Dividido em 3 partes, Que ferai-je, moi, de cette épée ? é a saga de uma artista cuja busca é justa: como atingir o verdadeiro estado de beleza num mundo como o nosso? Para Liddell, o conceito de beleza é de ordem da essência, do primitivo, não sendo, portanto, compatível com o estilo de vida contemporâneo (onde estamos cada vez mais sugados pela máquina burocrática e por regras castradoras de desejos, de impulsos). E quem a artista escolhe como símbolo desse mundo normatizado ao extremo? Justamente a sociedade francesa: a que gerou grandes artistas e pensadores, mas a que também deu ao mundo uma estrutura burocrática difícil de qualquer ser-humano-com-sangue-nas-veias lidar… Por isso, já no início do espetáculo, há uma projeção de um texto bastante irônico dizendo, dentre outras coisas, que o destino da França é ter uma morte decente…
O solo do palco é de material cor azul repleto de estrelas brancas, e a performer usa um vestido brilhante dourado (daqueles do tipo extravagante, de estética “cassino de Miami”). Sua alusão ao picadeiro de circo é evidente, e serve como crítica ao grande circo de egos que hoje é o Festival d’Avignon (peça importante da grande engrenagem que hoje é a tal “indústria do entretenimento”). O tempo industrial é rápido, contínuo, barulhento, de uma relação incessante de compra e venda, de acumulação de capital… Já o tempo artesanal é artístico, contemplativo, a intenção é de “acumular experiências” (W. Benjamin). Por isso, Liddell transforma o palco num circo de “acrobatas de desejos”, fazendo uso de uma estética muito semelhante ao dos filmes do multiartista chileno Alejandro Jodorowsky. Ou seja, a performer trabalha o tempo todo com a ideia de junção de opostos, de “grotesco” (segundo V. Meyerhold). Cenas belas/ poéticas/ eróticas são intercaladas a cenas que beiram ao trash, ao monstruoso, ao não tão facilmente digerível.
Máquinas desejantes

[/O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções. (Deleuze e Guattari)/]

Num primeiro instante, Liddell entra em cena. Levanta seu vestido, mostra sua bunda e sua vagina, e a molha com água (referência ao banho de assento, procedimento bastante feminino). Ao fundo, uma música erudita instrumental (tom de importância como contraponto a um hábito tão cotidiano da mulher na sua intimidade). Ela diz um texto sobre desejo. Não é uma descrição idealizada, romântica, nem nada disso. É o desejo que devora o outro de tal maneira que ele se transforma em um ato de canibalismo. A performer diz querer ser desejada mesmo quando for um cadáver (máquina de desejos deleuziana, outro contraponto à abstenção da produção de desejos do sistema capitalista).
Em seguida, sai Liddell, e entram em cena 8 moças-jovens-loiras, de quase mesma estatura e tipo físico, de idade próximo de 20 anos, usando vestido preto. Entram em cena também 3 rapazes asiáticos-jovens-magros, portando camisa branca e calça preta, bem como uma mulher asiática nua, de maquiagem e cabelo de gueixa, com círculos brancos marcados em todo seu corpo. As 8 moças, os 3 rapazes e a gueixa se movimentam no palco numa relação de simetria perfeita (o conceito de beleza grega passa pela questão do simétrico). A coreografia entre esses 2 grupos distintos sugere uma relação de desejo e culpa. Todos desejam, do ocidente ao oriente, mas todos têm medo de seguir seus impulsos. Num dado momento, um dos jovens asiáticos dança liricamente pelo espaço, e confessa timidamente que sua fantasia é ser devorado por jovens loiras. Em outro momento, sempre numa relação de simetria, as jovens se despem completamente, lêem um livro (o pensamento pode ser erótico), e dançam as diferentes facetas da libido. Ou seja, cada uma, num espaço diferente do palco, faz movimentos repetidos que remetem a diferentes posições sexuais. A cena segue num ritmo crescente, com auxílio da trilha sonora. A partir daí, seus movimentos passam a sugerir uma relação de dominação e submissão, e o ato sexual se transforma enfim em matéria de natureza amoral, comandada exclusivamente por impulsos (clara evocação à Pasolini).
A primeira parte do Que ferai-je… é claramente inspirada pelo entendimento de de Nietzsche sobre a natureza dos homens na tragédia grega, a qual seria formada pelos pólos apolíneo (razão, pensamento moderado) e dionisíaco (êxtase, emoção, embriaguez de espírito). O espetáculo se desenvolve em direção ao pólo dionisíaco a fim de atingir um estado de êxtase rumo ao divino… O divino que reside em cada um de nós, que reside no corpo…
Quando a fala vira musicalidade, e o político se afasta do político, político, político
A segunda parte de Que ferai-je, moi, de cette épée ? é a mais curta e a de tom mais melancólico. Liddell fala quase ininterruptamente. Ela se coloca como Medeia: um estrangeiro será sempre visto como um bárbaro… Ela fala fala fala até cansar nossos ouvidos, e esse ato repetitivo de “narrar” detalhadamente em língua espanhola a permite de brincar com a musicalidade das palavras. A sonoridade das suas frases passa a ser mais importante que seu sentido. Num diálogo paranóico com ela mesma em que ela se coloca como a co-responsável pelos atentados de Paris em novembro de 2015, o espetáculo só ganha novo fôlego com a entrada das máquinas desejantes.
Já a terceira parte inicia com Liddell com um macacão estampado de esqueleto e um casaco colorido brilhante. Aqui ela evidencia seu papel de apresentadora do grande circo… Com uma fala cortante, sua arma mais poderosa, ela desfere contra tudo e todos: contra a “sociedade francesa” (vocês que são responsáveis pelos atentados em Paris), e até mesmo contra o festival (o político, o político, o político, blábláblá). Após o discurso feroz, a performer trabalha novamente por ideia de oposição. Por exemplo, enquanto os rapazes asiáticos festejam com uma garrafa de champagne, toca-se a música Malagueña Salerosa (cuja letra descreve uma moça muito bonita). Nesse momento, é mostrada na tela a imagem de um corpo em decomposição… Outro exemplo, enquanto as jovens loiras e Liddell pulam repetidamente sobre o palco, há uma música da banda de rock Eagles of Death Metal (que tocou no teatro Bataclan na noite do massacre do dia 13 de novembro de 2015 em Paris). Novo momento de desconforto do público…
Grande espelho deformante

[/O grotesco molesta o contraste, conscientemente criando a agudeza das contradições e jogando conjuntamente com sua particularidade. (…) O grotesco aprofunda o cotidiano de tal maneira que ele deixa de ser em si somente natural. Na vida, além daquilo que vemos, há ainda uma enorme esfera do enigmático. O grotesco, que busca o supernatural, vincula na síntese extratos das contradições, cria o quadro do fenomenal e leva o espectador à tentativa de adivinhar o não adivinhável. (Meyerhold)/]

A teoria de Meyerhold a respeito do assunto tem como principal objetivo instigar um novo modo de percepção no espectador. E Liddell o faz: através da sua bufonaria erótica-filosófica, ela obriga o espectador a se mexer…
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[/DIONYSOS : Sois avisée, Ariane !…
Tu as de petites oreilles, tu as mes oreilles :
mets-y un mot avisé ! –
Ne faut-il pas d’abord se haïr, si l’on doit s’aimer ?…
Je suis ton labyrinthe.
(Nietzsche)/]

Une piste de cirque à la Jodorowsky
Divisé en 3 parties, Que ferai-je, moi, de cette épée ? montre la saga d’une artiste dont sa recherche est juste : comment arriver au vrai état de beauté dans ce monde merdique actuel ? Pour Liddell, le concept de beauté a un rapport à l’essence, au primitif, et n’est pas compatible avec le style de vie contemporain (où nous sommes, la plupart du temps, absorbés par la machine bureaucratique et par des règles castratrices des désirs, et des impulsions). Et qu’est-ce que choisit l’artiste comme symbole de ce monde normatif à l’extrème ? Précisément la société française : celle qui a généré des grands artistes et penseurs, mais celle aussi qui a produit une structure bureaucratique difficile pour « n’importe-quel-être-humaine-de-sang-dans-ses-veines »… Donc, au début du spectacle, il y a une projection d’un texte très ironique qui dit, par exemple, que le destin de la France est d’avoir une mort décente…
Le plateau, lui, est d’une couleur bleue, marqué par des étoiles blanches, et la performer a passé une robe brillante dorée extravagante, d’esthétique « casino de Miami ». Son allusion évidente à la piste de cirque est une critique au grand cirque d’égos du Festival (actuellement une pièce importante du grand engrenage de l’« industrie du divertissement »). Le temps industriel est rapide, constant, bruyant, et il y a toujours une relation d’achat et de vente, d’accumulation de capital…
Chez Liddell, désormais, le temps artisanal est artistique, contemplatif. C’est un temps (et c’est son intention) d’accumulation des expériences (W. Benjamin). Par la suite, Liddell convertit le plateau en une piste de cirque avec des « acrobates du désir », au travers d’une esthétique très similaire aux films du multi-artiste chilien Alejandro Jodorowsky. C’est-à-dire, que la performer travaille tout le temps à partir de la jonction des contraires et du « grotesque » (V. Meyerhold). Les scènes belles et trashes, poétiques et monstrueuses, érotiques et désagréables sont intercalées continuellement.
Machines désirantes
[/Ce qui définit précisément les machines désirantes, c’est leur pouvoir de connexion à l’infini, en tous sens et dans toutes les directions. (Deleuze et Guattari)/]
Au premier instant, Liddell se met en scène. Elle lève sa robe, montre ses fesses, ensuite son vagin, et le baigne avec de l’eau (une référence au bain de siège, procédure très féminine). Puis, il y a l’accompagnement d’une musique classique instrumentale qui sublime une forme d’intimité féminine. Liddell raconte un texte sur le désir qui n’est pas romantique ni idéalisé. C’est le désir de dévorer l’autre de telle manière qu’il devient un acte de cannibalisme. La performer veut être désirée même morte (machine désirante, autre contrepoint à l’abstention de production des désirs du système capitaliste).
Ensuite, Liddell quitte le plateau, et il vient sur scène 8 jeunes blondes (de presque même taille et d’un type physique, de 20 ans environ, habillées de robe noire), puis 3 mecs asiatiques maigres (en chemise blanche et pantalon noir), ainsi qu’une femme asiatique toute nue, au visage de geisha, avec son corps marqué par les cercles blancs. Les 8 blondes, les 3 mecs et la geisha se déplacent sur le plateau dans une relation de parfaite symétrie (le concept de beauté grecque a un rapport au symétrique). La chorégraphie entre ces 2 groupes suggère une relation de désir et de culpabilité. Tous désirent, de l’occident à l’orient, mais tous, aussi, ont peur de leurs impulsions. A un moment, un des jeunes asiatiques danse lyriquement, et timidement il admet son fantasme d’être dévoré par de jeunes blondes… Ensuite, encore dans une relation de symétrie, les jeunes se déshabillent totalement. Elles lisent un livre (la pensée est aussi érotique), et dansent les différents aspects de la libido. C’est-à-dire que chacune fait des mouvements répétés qui resemblent à des positions sexuelles.
Cette scène continue dans un rythme croissant (avec l’aide de la bande sonore), et à partir de ce moment-là leurs mouvements suggèrent une relation de domination et de soumissions. L’acte sexuel devient enfin une matière amorale, dirigée uniquement par des impulsions (évidente évocation à Pasolini).
La première partie de Que ferai-je… est inspirée par la compréhension de Nietzsche à propos de la nature des hommes à l’époque de la tragédie grecque, formée par les pôles apollonique (raison, pensée modérée) et dionysiaque (extase, émotion, ivresse d’esprit). Le spectacle se développe lui vers le pôle dionysiaque afin de trouver le divin… Le divin qui existe dans nos corps…
Au moment où la parole devient la musicalité, et où le politique s’éloigne du politique, politique, politique
La deuxième partie de Que ferai-je, moi, de cette épée ? est la plus courte et la plus mélancolique. Liddell parle au public presque sans arrêt. Elle se met comme Medea : un étranger sera toujours regardé comme un barbare… Elle parle parle parle jusqu’à fatiguer et saturer nos oreilles, et cet acte répétitif de nous raconter en langue espagnole lui permet de jouer avec la musicalité des mots. La sonorité de ses phrases est plus importante que leur sens… Au travers d’un dialogue paranoïde avec elle-même, l’artiste se présente comme coresponsable des attentats à Paris (novembre 2015). Le spectacle gagne nouveau souffle à partir de la rentré des machines désirantes.
Désormais, la troisième partie montre une Liddell habillée d’une combinaison de crâne et un blazer coloré brillant. Ici elle manifeste son rôle d’animatrice du grand cirque… À partir d’une parole cinglante – son arme la plus vigoureuse – elle « arrose » et mitraille tout le monde : la « société française » (vous êtes responsables par les attentats à Paris), et le festival (le politique, le politique, le politique, bla-bla-bla). Après son discours féroce, la performer travaille encore avec l’idée de « grotesque ». Par exemple, lorsque les mecs asiatiques fêtent sur le plateau, il y a la chanson Malagueña Salerosa (dont la parole décrit une jolie femme). Simultanément sur l’écran, les images d’un corps en décomposition sont montrées… Autre exemple, lorsque les jeunes blondes semi-nues, ainsi que la performer, sautent de façon répétitive sur le plateau. Là, il y a la chanson du groupe de rock Eagles of Death Metal (lequel a joué au théâtre Bataclan le soir de l’attentat de 13 novembre 2015 à Paris). Nouveau moment d’incommodité du public…
Le grand miroir déformant
[/Le grotesque provoque le contraste, en créant des contradictions et en jouant simultanément avec sa particularité. (…) Le grotesque approfondit le quotidien, car il cesse d’être naturel. Au-delà de ce que l’on voit, il y a encore une énorme sphère de l’énigmatique. Le grotesque lie des contradictions, crée un cadre phénoménal et invite le spectateur à deviner l’indevinable. (Meyerhold) /]
La théorie de Meyerhold veut encourager une nouvelle perception chez le spectateur. Et Angelica Liddell le fait : au travers de sa bouffonnerie érotique-philosophique, elle oblige le spectateur à bouger…
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